Nota 33: O íntimo e o estranho

Longas viagens de ônibus são um contexto social propício para estranhos interagirem e contarem suas vidas uns aos outros. Experiencia-se uma situação na qual há tempo ocioso, mas pouca coisa a fazer, que não seja conversar. O que é interessante para um sociólogo é a facilidade com que certas pessoas falam sobre suas biografias e as de seus parentes com pessoas que elas acabaram de conhecer. Ao nível da personalidade, isso implica uma disposição para a interação face a face, uma habilidade, biograficamente adquirida, para o diálogo, a conversa com quem não é íntimo ao nível da amizade ou do parentesco. Ao nível sociológico, isso denota que existe, em alguma medida, a produção social de uma espécie de "intimidade com estranhos" ou uma "estranhidade íntima",  a partir dessas interações efémeras entre pessoas que não se conheciam, tais como as que acontecem em viagens de ônibus. Penso que não conhecer o outro é convidativo para essas interações, pois compartilhar a própria intimidade ou a de parentes e amigos ou conhecidos com um estranho, alheio aos círculos de amizade e relações de parentesco, não põe em risco a privacidade, a integridade ou a reputação das pessoas cujas vidas são temas das conversas. O estranho possui, momentaneamente, uma espécie de combinação entre distanciamento social e próximidade física, que tende a ser como a de um psicanalista numa sessão de terapia, nessas situações de "confinanento" provisório como as longas viagens de ônibus. Uma dúvida é se esse é um fenômeno apenas nordestino, brasileiro ou universal.

Raphael Cruz

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