Agrofuturismo: utopia camponesa e ficção científica na Revolução Russa

Alexander Chayanov (1888-1937)

APRESENTAÇÃO

Este texto foi publicado originalmente de forma impressa no boletim Ideias Perigosas, em julho de 2020, pela editora Terra sem Amos.

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AGROFUTURISMO: UTOPIA CAMPONESA E FICÇÃO CIENTÍFICA NA REVOLUÇÃO RUSSA

Em 1920, uma novela de título longo e autor desconhecido era publicada pela imprensa oficial do governo soviético. Tratava-se de Viagem de meu irmão Alexei ao país da utopia camponesa, de autoria de Ivan Kremnev. O misterioso escritor era, na verdade, Alexander Chayanov, um agrônomo e funcionário público.

Mais conhecido no Brasil por sua teoria da economia camponesa do que por sua criação literária, Chayanov elaborou na Viagem um futuro alternativo para a Revolução Russa de 1917. Nele, a sociedade pós-revolucionária baseou-se na valorização social e cultural do campo e não da cidade. Nesse contexto, a ação dos camponeses e seus partidos foram decisivas para os rumos da revolução. O protagonista da novela, Alexei, é um funcionário do governo que dormiu numa noite de 1921 e acordou em 1984.

Diferente do cânone ocidental da ficção científica, Viagem não é uma distopia, mas uma utopia. Não trata de um governo autoritário, de uma sociedade individualizada, de miséria econômica ou colapso ecológico. O campesinato criou um futuro de abundância através de uma economia cooperativa gerida por conselhos locais. Críticos acreditam que a obra serviu de inspiração para Orwell, mas permanece desconhecida até de leitores experientes de scifi. Viagem aproximava-se das aspirações do Partido Socialista Revolucionário e diferenciava-se da política de coletivização do campo proposta por Stalin. Isso porque Chayanov trabalhou sua matéria literária a partir daquela tradição russa de valorização do campesinato e do manejo comunal e familiar da terra como o ponto de partida para a organização não capitalista da sociedade.

Essa cosmologia política entrou para a história com o nome de narodnismo e antecedeu a chegada do marxismo à Rússia. O narodnismo não possuía as intenções industrialistas e europeizantes de mencheviques e bolcheviques. Seus teóricos almejavam um percurso histórico para a Rússia sem a necessidade de uma etapa capitalista para se atingir o socialismo. Traduzido, às vezes, no Brasil como "populismo russo", o narodnismo não tem  a ver com estadistas e liderança carismática, mas com o povo. Isso porque em russo a ideia de nação era pensada como um Povo-nação e não como um Estado-nação.

A novela teve uma tiragem de 20 mil exemplares e seu prefácio foi escrito por um alto diplomata soviético que justificou sua edição como um alerta sobre os “malefícios” do cooperativismo e a necessidade de uma “regeneração” moral do campesinato apegado à posse familiar da terra. As ideias expostas por Chayanov eram contrárias a política agrária de Stalin e em 1930, o autor foi preso, acusado de compor um antissoviético Partido Camponês dos Trabalhadores, que nunca existiu, e serviu apenas de pretexto para os expurgos stalinistas. Após anos de trabalho forçado no Cazaquistão, Chayanov foi fuzilado em 1937.

Como qualquer obra, Viagem não é impermeável a seu contexto cultural, presente na novela através da aceitação do patriarcalismo da tradição camponesa, e de certas aspirações eugenistas, hoje devidamente condenadas e que à época era aventada por intelectuais, inclusive socialistas. Contudo, Viagem é ainda um exercício de imaginação histórica, repleto de sarcasmo e cuja valorização do rural e do cooperativismo é bem-vindo num período de crise do capitalismo e colapso ambiental. Seu agrofuturismo contém não apenas uma crítica aos rumos da revolução na Rússia, mas um vislumbre de suas potencialidades não concretizadas e um chamamento a realizar outros mundos possíveis no século XXI, por “fora” do industrialismo e contra a modernidade capitalista.

Raphael Cruz

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