O dia em que Louise Michel inventou a bandeira anarquista

Louise Michel (1830-1905)


Quase todo anarquista conhece a história de que a bandeira negra foi utilizada pela primeira vez por Louise Michel, a communard e anarquista francesa, durante uma passeata de desempregados em Paris, França.

A bandeira negra ou a rubro-negra são dois estandartes do anarquismo ao nível internacional. Junto ao mais contemporâneo "anabola", eles sinalizam a presença de anarquistas em manifestações e demais rituais políticos.

Ao ler "Anarquismo e a história da bandeira negra", de Jason Wehling (1997), tomei conhecimento sobre o pioneirismo de Louise Michel no uso do referido estandarte como um símbolo anarquista.

Naquele artigo, Wehling afirma, apoiado em George Woodcock, que Michel teria usado a bandeira negra pela primeira vez em 9 de março de 1883, durante uma passeata de desempregados em Paris, na França, que contou com 500 pessoas e Louise como líder. O autor diz ainda que "nenhum aparecimento mais antigo pode ser encontrado da bandeira negra" e identifica um uso posterior ao de Michel em 27 de novembro de 1884, em Chicago, EUA, durante uma manifestação anarquista.

Guardei essa sociogênese da bandeira como parte de minha autofomação em anarquismo. Décadas depois, pesquisando sobre Louise Michel na Hemeroteca Virtual da Biblioteca Nacional, ressurgiu para mim a história daquela bandeira.

Na edição de 28 de julho de 1883 do Mercantil, um jornal de Petrópolis, encontrei o artigo de um correspondente do periódico em Paris, que relatava, numa crônica política, aquela passeata de desempregados liderada por Michel.

A crônica indica que a bandeira negra foi usada na mesma data afirmada por Woodcock. O cronista, diga-se de passagem, é simpático à Louise Michel e afirma que Emile Pouget esteve com ela na liderança daquela manifestação e foi condenado a oito anos de prisão, e Michel a seis anos.

A crônica contém detalhes que não foram mencionados por Wehling. Ela nos informa que o evento inaugurador do uso da bandeira negra contou não só com uma manifestação de desempregados, mas com brutalidade policial, provas forjadas, criminalização do protesto, acusações injustas, prisão de lideranças e indignação popular com o veredito.

É representativo do que é o anarquismo, o fato da gênese social da bandeira negra ocorrer numa manifestação de tralhadores desempregados contra a carestia, liderada por uma anarquista ex-communard e pelo futuro vice-secretário de uma histórica organização operária francesa, a CGT, e um brilhante teórico do sindicalismo revolucionário (Santos, Mauricio, 2020a).

O dia em que a bandeira negra foi erguida pela primeira vez, indica uma prévia do modus operandi antianarquista do Estado, quase uma receita de bolo para criminalizar o protesto social e encarcerar lideranças popoulares. Isto é, um manual de como transformar a questão social em caso de polícia.

Três meses após inventar o estandarte que posteriormente seria associado ao anarquismo, Michel foi condenada à prisão. Sua mãe morreu durante esse período. Com quase três anos de encarceramento, ela foi perdoada e libertada com a intervenção de Clemenceau e Rochefort. Saiu dali e realizou uma série de comícios. Pouget seria libertado ainda naquele mesmo ano (Santos, Mauricio, 2020b).

O antropólogo Leslie White (2009) disse que o símbolo é composto de um significado e uma estrutura física através da qual o símbolo "entra" em nossa experiência. Em 9 de março de 1883, Louise Michel nos deu esse objeto, um pedaço de pano preto, e um significado, a anarquia. Ela inventou um símbolo político até hoje legitimado pelos anarquistas e reconhecido em todo o mundo. 

Obrigado, Louise.

Segue trecho da crônica que narra aquele dia em que o anarquismo ganhou um de seus símbolos mais longevos. O texto está com a ortografia da época em que foi escrito.

Raphael Cruz

***

EXTERIOR. Correspondente particular do Mercantil. Paris, 2 de julho de 1883

(...) Os politicos mais optimistas receião viva commoção, facilmente explicavel pela effervescencia dos animos em face da inqualificavel sentença arrancada ao jury pela accusação publica contra Puget e Louise Michel, por terem tomado parte na manifestação de 9 de março.

Muitos operarios sem trabalho, e consequentemente sem pão, organisárão um meeting, nessa data, para protestarem contra a inercia governamental, quando se trata de questões sociaes estreitamente ligadas aos interesses vitaes dos proletarios.

Essa reunião pacifica que, como varias outras da mesma especie, seria tolerada sob o regimen monarchico da Inglaterra, desagradara soberanamente ao gabinete francez, embuçado em um falso manto republicano.

Dispersando os grupos, a policia, segundo o seu suave costume, espancara e ferira quantos cidadãos se achavão à sua alçada.

À frente de um delles, percorrendo varias ruas, marchava LouiseMichel, arvorando uma bandeira preta, signal de miseria e fome.

Aproveitando o ensejo, que lhes parecia extremamente propicio a tornar os manifestantes responsaveis de qualquer delicto, immundos policiaes, armados de bengalas, invadirão algumas padarias, roubando pães e injuriando os padeiros.

E, para não se julgar exagerada a esta estupenda asserção, accrescentarei que não se prendeu uma só pessoa culpada de roubo de paes; sobre as que forão presas pesava accusação de haverem incitado as outras a roubarem.

Graças a esta simples accusação, baseada em ridiculos depainentos, e ao discuso do procurador, que incutio no animo dos jurados, geralmente negociantes, o terror de verem suas lojas e armazens saqueados se absolvessem os réos. Louise Michel foi condemnada a seis annos de prisão, Pouget a oito annos e Moreau a um anno, como chefes; não comparecendo sequer um gato da manifestação tendo comido os famosos pães, tão favoraveis ás insidias da camarilha.

Quão pifios e abjectos parecerão os autores desse indigno processo, ao lado de Pouget, denunciando, em alto e bom som, a infamia da justiça que abria os testamentos dos réos e transformava os delictos politicos em delictos de direito commum!

Que baixa vileza desses birbantes ante a nobreza de Louise Michel, declarando, sobranceira, que a pena de morte ou de galés ser-lhe-hia indifferente, se dos seus soffrimentos proviesse a menor modificação em proveito da sociedade.


Referências

SANTOS, Alexandre; MAURICIO, Francisco (Orgs). MICHEL, Louise. Paris está em chamas: memórias da Comuna. S/l: Terra sem Amos: 2020a.

SANTOS, Alexandre; MAURICIO, Francisco (Orgs). POUGET, Emile. A sabotagem - Ação direta. Parnaíba: Taipa Editorial, 2020b.

Exterior. Mercantil, Petrópolis, ano 27, n. 57, p. 2, 28 julho 1883.

WEHLING, Jason. History of the black flag: why anarchists fly it. What are its origins?’. Fifth Estate, n. 349, 1997.

WHITE, Leslie. O conceito de cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

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