David Graeber e a reinvenção da roda

David Graeber (1961-2020)

Já escrevi aqui como o trabalho de Graeber significou pra mim um sopro de ar fresco nas ciências sociais ao interseccionar as contribuições do anarquismo e do autonomismo com a teoria social acadêmica.

Contudo, algo recorrentemente me incomoda ao ler Graeber. O fato de ele tratar de certos temas como se ninguém tivesse feito isso antes dele. É como se ele estivesse "reinventando a roda", como bem sintetiza a expressão utilizada por brasileiros pra se referir a alguém que reinventa algo que já foi inventado. Cito dois exemplos.

Em nenhum momento de seu ensaio-manifesto Fragmentos de antropologia anarquista (2004), ele cita os antropólogos Kenneth Maddock e Harold Barclay, que entre as décadas de 1960 e 1990, já identificavam afinidades entre a antropologia e o anarquismo.

Em seu artigo sobre "comunismo cotidiano" (2010), ele não cita Anarchy in action (1973) de Colin Ward. Este livro é anterior ao artigo de Graeber e possui o mesmo argumento, a saber, que sociabilidades não autoritárias já são praticadas pelas pessoas comuns e poderiam ser embriões de uma outra forma de ordenar a sociedade. George Woodcock nomeou isso de a teoria da "anarquia cotidiana" de Ward (Shantz, 2012).

Acho improvável Graeber nunca ter lido esses autores. Baseio minha hipótese numa comparação. Mesmo eu que nasci e cresci numa cidade interiorana de uma região periférica (Nordeste) num país periférico (Brasil), numa cultura não anglo-saxônica, conheci os trabalhos de Barclay, Maddock e Ward pela internet.

Dessa forma, suponho que seria difícil que Graeber não tenha tido o mínimo de contato com essa literatura. Pois ele nasceu e cresceu em Nova York, estudou em Chicago, morou e trabalhou em Londres. Falava e escrevia na mesma língua que esses autores e circulou por meios ativistas e acadêmicos anglófonos.

No fundo, talvez, eu não queira pôr em risco a imagem idealizada que tenho de Graeber enquanto ativista e intelectual crítico e criativo. Contudo, minha "desconfiança de caboclo" tende a hipótese de que o autor foi "omisso por opção" com alguns de seus antecessores políticos e intelectuais. Nesse sentido, sua reinvenção da roda teria sido algo consciente.

Raphael Cruz


Referências

BARCLAY, Harold B. People without government: an anthropology of anarchy. Londres: Kahn & Averill, 1982.

BARCLAY, Harold B. Anthropology and anarchism. In: The Raven, nº 18, pp. 141-178, 1992.

GRAEBER, David. Communism. Anarchist Library. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/communism. Acesso em 23 jun. 2023.

GRAEBER, David. Fragments of an anarchist anthropology. Chicago: Prickly Paradigm Press, 2004.

MADDOCK, Kenneth. Action anthropology or applied anarchism? Anarchy, n.8, 1961.

MADDOCK, Kenneth. Pluralism and Anarchism. Red and Black, v. 2, 1966.

MADDOCK, Kenneth. Politics and science in Radcliffe-Brown: from anarchism to applied anthropology. Rhodes University, Institute of Social and Economic Research, 1994.

SHANTZ, Jeff. An anarchy of everyday life. Anarchist Library. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/jeff-shantz-an-anarchy-of-everyday-life. Acesso em 23 jun. 2023.

WARD, Colin. Anarchy in action. [s/l] George Allen & Unwin Ltd, 1973. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/colin-ward-anarchy-in-action. Acesso em 23 jun. 2023.

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