Bakunin e a sociologia

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Mikhail Bakunin (1814-1876)


UMA CIÊNCIA RECENTE E DIFÍCIL

Para Bakunin, a sociologia é, em 1867, a mais difícil ciência, contudo bastante recente, ainda em busca de seus princípios, e que levaria um século, no mínimo, para se tornar uma ciência séria e completa.

"A sociologia é uma ciência que acabou de nascer, que ainda está à procura de seus elementos, e se julgamos esta ciência como a mais difícil de todas, segundo o exemplo das outras, devemos reconhecer que lhe serão necessários séculos, um século pelo menos, para que se constitua definitivamente e se torne uma ciência séria, um tanto suficiente e completa" (1979, p. 87). [1]

O QUE É SOCIOLOGIA?

Mas o que Bakunin entendia por sociologia?

Para ele, a sociologia englobaria "toda a história humana como o desenvolvimento do ser humano coletivo e individual na vida econômica, política, social, religiosa, artística e científica" (1979, p. 85).

Acaba por defini-la como a "ciência de leis gerais que presidem a todos os desenvolvimentos da sociedade humana" (1979, p. 86). 

Nestas definições, a sociologia não se restringe ao entendimento de uma única esfera da vida social, mas abarca "toda a história humana". Essa é uma característica do pensamento sociológico, buscar relações entre as diversas esferas da vida.

O QUE É A SOCIEDADE?

Aqui, cabe fazer duas perguntas fundamentais: o que ele compreendia por sociedade e o que significa lei na concepção bakuniniana?

Comecemos por sua definição de sociedade:

"A sociedade é o modo natural de existência da comunidade humana, independente de qualquer contrato. É governada por costumes ou hábitos tradicionais, mas nunca por leis. Avança lentamente pelo impulso de iniciativas individuais e não pelo pensamento ou vontade do legislador. Há muitas leis que a regem à sua maneira, mas são leis naturais, inerentes ao corpo social, uma vez que as leis físicas são inerentes aos corpos materiais. A maior parte destas leis são até agora desconhecidas, e no entanto têm governado a sociedade humana desde o seu nascimento, independentemente do pensamento e da vontade dos homens que a compuseram; daí decorre que não devem ser confundidas com as leis políticas e jurídicas que, nos sistemas que estamos a examinar, proclamadas por qualquer poder legislativo, fingem ser as deduções lógicas do primeiro contrato conscientemente formado por homens" (1979, p. 125).

Para Bakunin, a sociedade é o "modo de existência" da "comunidade humana". Ele compreende esse modo como "natural", isto é, como organizado por leis "inerentes ao corpo social" como os costumes e os hábitos. Ele justifica essa conclusão por meio da analogia com as "leis físicas" que são inerentes aos "corpos materiais".

Bakunin atenta para a diferenciação entre esses costumes e hábitos (leis inerentes ao social), que se desenvolvem na sociabilidade humana, com a legislação estatal ("leis políticas e jurídicas"), que não deriva dos costumes e dos hábitos, mas do "pensamento ou vontade do legislador".

Quanto ao nível de conhecimento dessas leis sociais, a maior parte delas permanece desconhecida, apesar de governarem a "sociedade humana desde o seu nascimento". Isto é, o fato de existirmos nessa sociedade, não implica que tenhamos consciência das leis que a organizam. Tal afirmativa revela algo do realismo epistemológico de Bakunin.

Quanto a sua procedência, essas leis sociais são compostas pelos homens, isto é, originam-se socialmente e não de forma sobrenatural, divina ou teológica. As leis sociais são imantentes à sociedade. Bakunin dá seguimento a concepção proudhoniana do social, que antecipou em mais de um século, as reflexões de Cornelius Castoriadis sobre a autoprodução da sociedade.

O QUE SÃO AS LEIS DA SOCIEDADE?

Contudo, o que Bakunin entende por "lei"?

Temos uma pista disso em sua reflexão sobre o emprego pelas ciências da natureza da expressão "leis naturais que governam o mundo", expressão que, por sinal, ele repudiava, e que, enquanto categoria de pensamento, havia se originado na teologia.

"(...) o que chamamos leis naturais não constituem outra coisa que diferentes modos regulares do desenvolvimento dos fenômenos e das coisas, que se produzem, de uma maneira desconhecida para nós" (1979, p. 259).

A palavra lei significa, então, "modos regulares do desenvolvimento dos fenômenos".

Como nota Bakunin, essas leis são criações do espírito humano para tentar explicar, mas não esgotar, a indefinida riqueza desse desenvolvimento.

Nesse sentido, o conhecimento humano possui limites. Ele também reconhece que a constância e a repetição desses modos não são absolutas, havendo espaço para anomalias e exceções em relação a esses modos regulares. 

"Essa constância e essa repetição não são absolutas. Deixam sempre um amplo campo ao que chamamos impropriamente anomalias e exceções, modo de falar muito injusto, porque os fatos ao que correspondem somente provam que essas regras gerais, reconhecidas por nós como leis naturais, e que não são mais que abstrações elaboradas por nosso espírito do desenvolvimento real das coisas, não estão em estado de abarcar, de esgotar, de explicar toda a indefinida riqueza desse desenvolvimento" (1979, p. 97).

COMO INVESTIGAR A SOCIEDADE?

Entretanto, como investigar essas "leis", isto é, os "modos regulares do desenvolvimento dos fenômenos" do "corpo social"? Bakunin afirma que por meio das "leis dos eventos passados e da massa dos fatos presentes" (1979, p. 86).

"A história e a estatística nos provam que o corpo social, como qualquer outro corpo natural, obedece, em suas evoluções e transmutações, à leis gerais, que parecem ser tão necessárias quanto as do mundo físico. Extrair estas leis dos eventos passados e da massa dos fatos presentes, tal deve ser o objetivo desta ciência" (1979, p. 86).

Estudar as leis do desenvolvimento da sociedade humana é o objetivo da sociologia. Para isso, deveria ter como objeto de análise os eventos e os fatos, do passado e do presente, em outras palavras, aquilo que acontece e aquilo que aconteceu, em síntese, o mundo empírico.

Como visto acima, ele fundamenta essa escolha metodológica de objeto e objetivo por meio de resultados alcançados, à época, pela estatística e pela história.

Podemos indicar, com base nessas passagens das obras citadas, que para Bakunin, por meio da análise de eventos do passado e de fatos do presente (objetos), a sociologia busca descobrir o que há de regular (como os hábitos e os costumes) no desenvolvimento da sociedade humana (objetivo).

SOCIOLOGIA COMO TEORIA CRÍTICA

Por fim, para além de compreender e explicar as leis da sociedade (o ser), a sociologia teria um outro objetivo: tornar viáveis as transformações sociais almejadas pelos revolucionários socialistas. Nesse sentido, a sociologia responderia também a uma intenção política (o dever ser), o que antecipa a concepção de teoria crítica defendida por Horkheimer (2000), e a de sociologia crítica em particular.

"Fora do imenso interesse que apresenta ao espírito, ela nos promete, no futuro, uma grande ultilidade prática; isto porque, assim como não podemos dominar a natureza e transformá-la segundo nossas necessidades progressivas a não ser graças ao conhecimento que adquirimos de suas leis, só poderemos realizar nossa liberdade e nossa prosperidade no meio social se levarmos em conta as leis naturais e permanentes que o governam. Uma vez admitido isto, torna-se claro que o conhecimento e a estrita observação destas leis se tornam indispensáveis para que as transformações sociais que empreendermos sejam viáveis" (1979, p. 86).

No entanto, não caberia a sociologia resolver os problemas de organização social por meio de um "governo de sábios", mas, apenas, "indicar" as "causas gerais dos sofrimentos individuais" e "mostrar", então, "as condições gerais necessárias à emancipação real dos indivíduos que vivem na sociedade" (2014, p. 297). Nesse sentido, para Bakunin, a sociologia indica e mostra soluções para a sociedade, tem a mesma função das ciências físicas, a saber, "iluminar a estrada" (2014, p. 297), mas não concertar ela mesma essa estrada [2].

"Tudo o que temos direito de exigir dela [da ciência social] é que nos indique, com uma mão firme e fiel, as causas gerais dos sofrimentos individuais – e entre estas causas ela não esquecerá, sem dúvida, a imolação e a subordinação, infelizmente ainda costumeiras demais, (...) e que ao mesmo tempo nos mostre as condições gerais necessárias à emancipação real dos indivíduos que vivem na sociedade. Eis a sua missão, eis também os seus limites, além dos quais a ação da ciência social só saberia ser impotente e funesta. Pois além destes limites começam as pretensões doutrinárias e governamentais de seus representantes patenteados, de seus sacerdotes. E já está mais do que na hora de acabar com todos os papas e sacerdotes: não os queremos, mesmo que se chamem democratas socialistas" (2014, p. 297).

Raphael Cruz


Notas

[1] O termo sociologia fora usado pela primeira vez em 1839 por Auguste Comte no quarto tomo de seu "Curso de filosofia positiva", isto é, 28 anos antes de Bakunin escrever esse trecho. Nesse sentido, ele tem razão em classificá-la como uma  "ciência que acabou de nascer". Contudo, se levarmos em conta o prognóstico histórico de Bakunin, a sociologia só teria se tornado uma "ciência séria" em 1967. Contudo, as aspirações a essa seriedade já datam de 1895, quando Émile Durkheim publica "As regras do método sociológico", na França, isto é, 28 após Bakunin escrever aquele trecho. Assim, no período entre 1839 e 1895, isto é, em 56 anos, a sociologia é inventada e proposta como uma ciência na França. O que nos sugere a possibilidade de pensá-la, ao menos em seu estágio inicial, como um tipo de pensamento francês, associada à uma tradição nacional de pensamento social elaborada por filósofos de formação: Auguste Comte e Émile Durkheim.

[2] Para a discussão de Bakunin sobre as possibilidades e limites da ciência para a revolução social e a reorganização da sociedade, consultar sua obra O império Knuto-germânico e a revolução social e o manuscrito Sofismas históricos da escola doutrinária dos comunistas alemães, que é a segunda parte de O império Knuto-germânico e a revolução social.

Referências

BAKUNIN, Miguel. Federalismo, socialismo y anti-teologismo. In: BAKUNIN, Miguel. Obras completas de Miguel Bakunin, Vol. 3. Tradução Diego A. de Santillán. Madri: La Piqueta, 1979.

BAKUNIN, Miguel. Filosofía. Ciencia In: BAKUNIN, Miguel. Obras completas de Miguel Bakunin, Vol. 3. Tradução Diego A. de Santillán. Madri: La Piqueta, 1979.

BAKUNIN, Mikhail. Sofismas históricos da escola doutrinária dos comunistas alemães [O império Knuto-germânico parte II]. In Ferreira, A. C.; Toniatti, T. B. De baixo para cima e da periferia para o centro: textos políticos, filosóficos e de teoria sociológica de Mikhail Bakunin. Niterói : Alternativa, 2014.

HORKHEIMER, Max. Teoría tradicional y teoría crítica. Barcelona: Paidós, 2000.


Observação: esta postagem foi modificada em 12 de junhi de 2024.

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