Proudhon e a ciência social
Proudhon (1809-1865) |
Como o leitor poderá constatar, ela antecipa teses durkheimianas importantes como a racionalidade, a sistematicidade e a factualidade a ser alcançada no estudo da sociedade.
Outro ponto de similaridade é a importância dada ao trabalho como objeto de investigação para entender a sociedade, recurso utilizado por Durkheim 47 anos depois, em seu livro A divisão social do trabalho (1893).
A DESCOBERTA DA CIÊNCIA SOCIAL
O ano é 1839, e Proudhon já percebia a necessidade de uma ciência da sociedade.
Em A celebração do domingo (1839), o autor escreve:
"Mas o homem nasce para a sociedade: portanto, ainda é necessário estudar as relações dos homens entre si, a fim de determinar seus direitos e estabelecer regras para eles. Que complicação!"
Proudhon compreende, muito cedo, que o indivíduo e a sociedade são indissociáveis ("o homem nasce para a sociedade"). Seu ponto de vista faz pensar o quanto são parciais as teorias que, ainda hoje, centram-se apenas em um dos aspectos, ou o indivíduo ou a sociedade, dessa ontologia dialética que produz o social.
Outro ponto importante e recorrente em sua ciência social, é o aspecto normativo. Proudhon encarou que essa ciência teria uma contribuição política. Ao estudar "as relações dos homens entre si", ela contribuiria para determinar direitos e estabelecer regras sociais.
Partindo do estado em que se encontrava a matemática, a física e a filologia em sua época, Proudhon se questiona se deve existir uma ciência da sociedade.
"Há uma ciência das quantidades que força o assentimento, exclui o arbítrio, rejeita toda utopia; uma ciência dos fenômenos físicos, que se baseia apenas na observação dos fatos; uma gramática e uma poética baseadas na essência da linguagem, etc. Deve existir também uma ciência da sociedade, absoluta, rigorosa, baseada na natureza do homem e em suas faculdades, e em suas relações; ciência que não deve ser inventada, mas descoberta".
Nessa segunda citação, ele esmiúça um pouca mais sobre os alvos dessa ciência da sociedade: a) as faculdades humanas e b) as relações entre os homens.
Nota-se que as "faculdades", as quais se refere o autor, podem designar aquilo que ele viria a nomear, mais adiante em Da justiça na revolução e na igreja (1858), de "consciência coletiva", isto é, aos aspectos simbólicos da vida social, que também seriam tratados por Durkheim e a Escola Sociológica Francesa utilizando a mesma nomenclatura. Por sua vez, as "relações" podem estar antecipando a sua noção de "força coletiva", que seria trabalhada em sua obra seguinte, O que é a propriedade (1840).
Chama atenção, na citação acima, que para o autor essa ciência "não deve ser inventada, mas descoberta". Ele estaria se referindo a existência de um objeto, as "relações sociais", que já existiria anteriormente a própria instituição de uma ciência adequada ao seu estudo?
DEFINIÇÃO DE CIÊNCIA SOCIAL
Em 1846, foi publicado na França, Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria, de Pierre-Joseph Proudhon. Nesse livro, ele define a ciência social.
"Trata-se, portanto, e antes de mais nada, de reconhecer o que pode ser uma ciência da sociedade.
A ciência, em geral, é o conhecimento racional e sistemático daquilo que é.
Aplicando esta noção fundamental à sociedade, diremos: a ciência social é o conhecimento racional e sistemático não do que foi a sociedade, nem do que ela será, mas sim do que ela é em toda a sua vida, isto é, no conjunto de suas manifestações sucessivas, pois é somente ai que pode existir razão e sistema. A ciência social deve abraçar a ordem humanitária e não apenas em tal ou qual período de sua duração, nem em alguns de seus elementos, mas sim em todos os seus princípios e na integridade de sua existência, como se a evolução social, espalhada no tempo e no espaço, se encontrasse subitamente reunida e fixada em um quadro que, mostrando a série das idades e a sequência dos fenômenos, descobrisse o seu encadeamento e unidade. Tal deve ser a ciência de toda a realidade viva e progressiva, tal é incontestavelmente a ciência social" (Proudhon, 2003, p. 96).
Proudhon inicia sua definição de ciência social pela explicação do que é a própria ciência em sentido lato.
A ciência comporta características epistemológicas (racionalidade), metodológicas (sistematicidade) e ontológicas (factualidade).
Esses três caracteres são aplicadas ao conhecimento da sociedade (objeto).
Assim, a sociedade ou a "ordem humanitária" - Durkheim (2001), posteriormente, nomearia de "reino social" - é passível de ser compreendida de maneira científica. Isto é, racional, sistemática e factualmente como fenômeno humano.
Isso parece simplista para os ouvidos de um estudante de sociologia do século XXI.
Entretanto, quando Proudhon escrevia aquele livro, era necessária à perspectiva científica estabelecer distinção com a metafísica. Lembremos que, naquele período, na França, Comte utilizava o termo "positivismo" em oposição a "metafísica", no intuito de estabelecer uma separação entre o real, que pode ser observado, e o quimérico, que só pode ser imaginado (Russ, 1994). Esse esforço de separação entre o real e o metafísico, é o mesmo de Proudhon.
Elevar a "ordem humanitária" a objeto de ciência foi, assim, um desses atos inauguradores de uma ciência da sociedade, tanto quanto a invenção da palavra sociologia por Auguste Comte na década de 1830, e a publicação em 1838 de Como observar morais e costumes, de Harriet Martineau, que inventou o trabalho de campo sociológico.
ECONOMIA POLÍTICA COMO A CIÊNCIA SOCIAL
Proudhon (2003) concebia a economia política como a verdadeira ciência social.
"Quanto a mim, não é desta forma que concebo a ciência econômica, a verdadeira ciência social. Ao invés de responder pelos a priori aos temíveis problemas de organização do trabalho e de distribuição das riquezas, eu interrogarei a economia política como a depositária dos pensamentos secretos da humanidade; farei os fatos falarem segundo a ordem de sua geração, e relatarei, sem nada acrescentar de meu, o seu testemunho" (Proudhon, 2003, p. 176).
Pode-se extrair três afirmações desse parágrafo de Sistema das contradições econômicas:
1) A economia política é a ciência social.
2) Ela trata de "problemas" como a "organização do trabalho" e a "distribuição das riquezas".
3) Em seu método de investigação, parte do factual, isto é, centrado na dimensão empírica do fenômeno, no que ele "é", e não no que "deveria ser", isto é, em uma dimensão normativa. Durkheim (1994) inventou as noções de juízo de fato e juízo de valor para dar conta dessa diferença que nota-se em Proudhon.
Refletindo a partir desses extratos de Sistema das contradições, contidos na postagem acima, pode-se concluir que para o Proudhon de 1846, a) o estudo racional, sistemático e factual da b) organização do trabalho e da distribuição de riquezas, fenômenos de ordem humanitária, c) configuram a economia política como ciência social.
Raphael Cruz
Referências
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins fontes, 1977.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2001.
DURKHEUM, Émile. Filosofia e sociologia. São Paulo: Ícone, 1994.
MARTINEAU, Harriet. Como observar: morais e costumes. Governador Valadares: Editora Fernanda H. C. Alcântara, 2021.
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade. Lisboa: Editorial Estampa, 1975
PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistema das contradições econômicas, ou, Filosofia da miséria, tomo 1. Tradução de J. C. Morel (Coleção fundamentos de filosofia). São Paulo: Ícone, 2003.
PROUDHON, Pierre-Joseph. The celebration of sunday [1839]. Tradução Shawn P. Wilbur. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/pierre-joseph-proudhon-the-celebration-of-sunday. Acesso em 9 mai. 2023.
RUSS, Jacqueline. Dicionário de filosofia. São Paulo: Scipione, 1994.
Observação: texto revisado em 9 de maio de 2023.
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